A sorte de Santiago

Por Sara Gomes

Quando era pequena, Bete vivia vendo seu irmão Eduardo apanhar na rua. Havia um garoto em particular que o agredia constantemente: Santiago, filho do Seu Luiz e da Dona Bia.

O pai de Santiago tinha um bar. O casal mesmo dava conta de consumir a mercadoria. A casa deles ficava nos fundos do comércio, acessada por um corredor com um meio portão gradeado. Dona Bia era dona de casa e vivia bêbada. Quando o marido bebia, a confusão estava armada.

Talvez a violência doméstica influenciasse Santiago, quem sabe? O fato é que ele batia em Eduardo. Era difícil acreditar, porque, apesar de terem a mesma idade, Santiago era amarelado e franzino, daqueles tipos ossudos, com cabelos crespos avermelhados e olhos grandes. Eduardo era gordo e maior que Santiago. Mesmo assim, apanhava.

Bete era mais velha que Eduardo. Como tal, tomava conta dele e dos mais novos no turno da tarde, já que a maioria deles estudava de manhã. Enquanto isso, a mãe e a irmã mais velha iam para o comércio, há uns dois quarteirões de distância.

Ora, com uma mãe de sete filhos e um comércio, eles meio que faziam suas próprias regras. Particularmente, Bete testava todas as suas teorias infantis e, era bem criativa na traquinagem. Era uma verdadeira aventura.

Uma vez, ela construiu um fogão a lenha no quintal e quase botou fogo na casa. Noutra ocasião, foi dar banho nos mais novos de mangueira num piso escorregadio. A irmã caçula escorregou e bateu a cabeça. Bete precisou sair correndo atrás de socorro. A pequena foi levada ao hospital e levou seis pontos na testa.

Teve também o dia em que Bete foi roubar goiaba no terreno do vizinho. Ele soltou os cachorros literalmente; nunca ela escalou um muro tão rápido.

A operação “manda quem quer, obedece quem tem juízo” durava até os pais descobrirem. Então, apanhavam para saber que aquilo não podia. E apanhavam com frequência. Bete mais ainda por não dar o exemplo. Na escola, viviam a era do bullying, era violência para todo lado.

Nesse cenário, Bete sempre ralhava com Eduardo por apanhar na rua. Já bastava em casa. Dizia que ele era trouxa por apanhar de alguém menor. Chegou a ensinar alguns golpes a ele, mas em vão. Vez ou outra, ele chegava chorando. Na maioria das vezes, era o tal do Santiago.

Até que um dia Eduardo levou uma pedrada de estilingue na cabeça que lhe rendeu um corte que escorria sangue. E novamente o Santiago! Foi a gota d’água. Bete disse a Eduardo que não via outra solução a não ser dar o troco. Apelou feio.

– Ah não! Vamos resolver isso agora mesmo – disse a ele.

Ele limpou a bochecha com as costas da mão. Os olhos ainda vidrados de lágrimas não derramadas e um brilho satisfeito. Sabia que ela daria o troco, pois era galo de briga.

A esperança que Bete viu nele lhe deu um ânimo adicional. Foi à gaveta da cozinha e pegou uma faca de mesa de ponta redonda.

– É hoje que eu mato aquele Santiago – falou brava que só. Pegou um saco plástico, colocou a faca dentro e determinou: – No caminho a gente cata algumas pedras, porque vamos precisar.

E lá foram eles, Bete com o saco plástico numa mão e na outra arrastando Eduardo. Sua determinação tornava difícil para ele acompanhar seus passos.

Chegando ao destino, o bar estava fechado e nem sinal do Santiago. Não seria esse o problema. Bete foi até o portão lateral e gritou:

– Santiaaago! Ôoo Santiago!

Nada do Santiago aparecer. Determinada, insistiu. O dia era hoje. Cansou da sua impotência diante das surras grátis que o irmão levava. Chamou até que Dona Bia apareceu, trocando as pernas.

– Oi, Dona Bia! Cadê Santiago? – perguntou Bete.

Do seu lado, Eduardo, nessa hora mais sensato que ela, sussurrava:

– Vamos embora. Dona Bia vai contar pro papai.

Bete não queria saber dos problemas que viriam depois. Resolveria um de cada vez.

– Santiago não tá aqui. Deve tá na rua – disse Dona Bia.

Bete, para não deixar barato, formalizou a missão. Levantou a mão mostrando todo o arsenal e disse:

– Pois ele deu foi sorte, Dona Bia. Olha aqui óoo, eu vim pra matar ele. Mas eu volto outra hora.

Dona Bia deu um sorriso grogue. Muito certamente pensou que Bete estava de brincadeira.

– Quem sabe da próxima vez dá certo – disse Dona Bia.

– Vai dar. Da próxima ele não me escapa. – Pegou a mão de Eduardo de novo e voltaram para casa.

Não se sabe se Santiago escutou a conversa escondido ou se Dona Bia deu conta de passar o recado, certo é que nunca mais Eduardo apanhou dele. Até hoje eles riem do ocorrido.